Amor à Flor da Pele (2000), de Wong Kar-Wai
Escrito em 19/01/2023; revisado em 24/02/2023
Poucos filmes conseguiram traduzir com tanta delicadeza a solidão, o desejo contido e a opressão social quanto Amor à Flor da Pele, de Wong Kar-Wai. Mais do que narrar um romance impossível, o diretor constrói um retrato psicológico íntimo de duas personagens que encontram no outro um espelho de suas ausências.
O jogo das imitações
A relação entre a senhora Chan e o senhor Chow não nasce de uma paixão arrebatadora, mas de um jogo ambíguo: cada um simula o cônjuge do outro. Chow imita o marido ausente de Chan, ela assume o papel da esposa de Chow. Esse “faz de conta” é ao mesmo tempo fuga e prisão. É fuga porque oferece um espaço de experimentação onde ambos podem encenar afetos que lhes faltam. É prisão porque jamais ultrapassa o limite da fantasia: por trás da imitação, ainda há medo, vigilância e culpa.
Esse artifício psicológico é central: ao encenar, eles encontram uma forma de trair sem assumir a traição. O corpo não se entrega, mas a imaginação sim. Essa tensão cria a atmosfera mais pungente do filme — o amor não consumado que existe apenas na suspensão dos gestos.
Chan: a disciplina do silêncio
A senhora Chan é uma mulher marcada pela contenção. Bela, elegante, sempre com seus trajes de colarinho alto e tecidos bem cortados, ela encarna o ideal da retidão feminina. No trabalho, cumpre sua função com responsabilidade absoluta: organiza compromissos, compra presentes para o chefe, se comporta como filha dedicada. Em casa, é tratada como parte da família da senhoria, mas recusa qualquer envolvimento que a prenda ainda mais.
Seu mundo íntimo é mínimo: o quarto alugado, o ritual do lámen, as idas ocasionais ao teatro. Ela parece não sonhar, não se permitir desejar. Seu marido ausente ocupa todo o espaço de sua espera — a vida se organiza em torno dele, ainda que ele quase nunca esteja presente. A relação com Chow repete esse traço: em vez de se entregar, pede que ele imite o marido. Sua traição não é com outro homem, mas com a ausência.
A psicologia de Chan é a do recato sufocante, do medo de quebrar convenções. Cada passo parece pesado pelo olhar alheio. Há beleza em sua disciplina, mas também uma melancolia profunda: ela vive para não ser descoberta, para não ser julgada.
Chow: a consciência amarga
O senhor Chow, por sua vez, exibe um grau maior de consciência. Ele sabe da infidelidade da esposa, aceita-a sem explosões. Refugia-se na escrita de ficções, no exercício de imaginar outros mundos. Diferente de Chan, ele se permite desejar, mas sua ousadia encontra limite na realidade que não consegue romper. É sempre ele quem toma a iniciativa de aproximar-se de Chan, mas também é ele quem reconhece o caráter ilusório da relação.
Chow carrega uma tristeza lúcida. Não é o conformismo de quem se fecha, mas a percepção amarga de que a vida o aprisiona em muros que a imaginação não derruba. É ele quem, ao final, deposita seu segredo num buraco de templo, como quem enterra um amor impossível que só poderia existir como lembrança.
O peso da vigilância
Ambos vivem sob a constante suspeita. Os corredores estreitos, as paredes sujas, os quartos abafados reforçam o clima de claustro. A ausência de intimidade é um dos temas centrais do filme: na Hong Kong dos anos 1960, marcada por urbanização acelerada, compartilhar espaços era a regra. O resultado é uma vida sempre à vista dos outros.
Não à toa, a senhoria repreende Chan por suas ausências, lembrando-a de que “não é de bom tom” uma mulher casada passar tanto tempo fora de casa. O julgamento social não se limita à China da época: Wong Kar-Wai parece nos dizer que o moralismo é global. Basta lembrar que, quase vinte anos depois, a Inglaterra mergulhava em escândalo com a separação da princesa Margaret. O que sufoca Chan e Chow não é apenas o contexto político, mas a moralidade coletiva que atravessa culturas e fronteiras.
A estética do desejo contido
A atmosfera psicológica ganha reforço na própria forma do filme. Wong Kar-Wai utiliza imagens saturadas, desfocadas, slow motion, sobreposições. São recursos que criam um estado de suspensão: os encontros entre Chan e Chow parecem sempre deslocados, como se não pertencessem inteiramente ao real. A encenação de seus cônjuges é acompanhada por esse tratamento estético — a falsificação visível das imagens espelha a falsificação dos papéis que representam.
E a pergunta permanece: se eles se entregassem plenamente um ao outro, haveria uma estética diferente? O filme sugere que não, que talvez sua relação só possa existir nesse espaço de suspensão, entre o desejo e a impossibilidade.
O amor impossível como retrato social
Amor à Flor da Pele não é apenas a história de duas pessoas que não se permitem amar. É um retrato social e psicológico de uma época em que os corpos eram vigiados, os espaços íntimos rareavam e a moralidade ditava os limites do desejo.
Chan representa a disciplina silenciosa, o peso do dever e da culpa. Chow, a consciência amarga, a tentativa de dar forma literária ao que não se pode viver. Ambos se encontram num território de sombras — onde o amor não floresce à luz, mas à margem, entre sussurros, rituais e encenações.
Wong Kar-Wai não filma um romance de consumação, mas um romance da impossibilidade. E é justamente aí que reside sua força: na beleza trágica de um amor que só pôde existir como atmosfera, nunca como realidade.
Trailer de Amor à Flor da Pele
Direção: Wong Kar-Wai
Roteirista: Wong Kar-Wai
Artistas: Maggie CheungTony Leung Chiu-waiPing-Lam Siu







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