Masculino Feminino: Entre a Liberdade e a Tutela
Uma leitura pessoal sobre Godard, política e contradições
Jean-Luc Godard nunca foi cineasta de fórmulas fáceis. Sua obra é, antes de tudo, um convite — ou melhor, uma provocação — para que o espectador abandone a passividade e se arrisque no terreno instável de suas narrativas. Em Masculino Feminino (1966), essa provocação se traduz numa montagem que foge aos padrões, inclusive aos da atualidade: cortes bruscos, narrativa não linear e composições intertextuais que parecem desmontar qualquer ilusão de linearidade ou conforto.
O espectador, aqui, não “acompanha uma história”; ele é desafiado a decifrar fragmentos, a costurar sentidos e, muitas vezes, a conviver com a ausência deles. Godard explora a estranheza do inesperado — e faz disso uma assinatura. Mesmo quando não há nada a esperar, ele surpreende.
Jean-Luc Godard
O espectador, aqui, não “acompanha uma história”; ele é desafiado a decifrar fragmentos, a costurar sentidos e, muitas vezes, a conviver com a ausência deles. Godard explora a estranheza do inesperado — e faz disso uma assinatura. Mesmo quando não há nada a esperar, ele surpreende.
A experiência que fica depois dos créditos
Assistir a um filme de Godard não é apenas vivenciar uma narrativa: é experimentar um estado de provocação intelectual e sensorial. A experiência é singular e subjetiva. Muitas das frases soltas, dos gestos estranhos das personagens, das interrupções abruptas e dos enquadramentos incomuns parecem cuidadosamente calculados para ecoar na memória por dias, talvez semanas.
Em Masculino Feminino, esse eco se amplifica porque a obra carrega o peso e a vitalidade de dois debates centrais:
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A ingenuidade política da juventude diante da transformação social
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O machismo e os limites da chamada “libertação feminina”
Paul, Madeleine e um mundo em ebulição
O protagonista, Paul, começa a trama como um jovem em busca de emprego e acaba se tornando pesquisador. É um rapaz dividido entre seu interesse pela política e o fascínio pelas mulheres que o cercam — especialmente Madeleine, uma cantora pop em início de carreira.
Paul se aproxima dos movimentos operários e, em determinado momento, o filme menciona o Brasil, falando sobre a perseguição aos trabalhadores durante a ditadura militar. Esse contato com o contexto político vem principalmente por meio dos jornais e de um amigo sindicalista. Curiosamente, apesar do engajamento, não o vemos participando ativamente de piquetes ou greves: suas ações políticas se limitam a pichações e pequenos protestos contra representantes do imperialismo, quase sempre em círculos restritos e familiares.
Um tiro na porta do restaurante
Logo no início do filme, há uma cena tão súbita quanto simbólica: enquanto Paul conhece Madeleine em um restaurante, uma mulher atira e mata o que seria, supostamente, seu marido, do lado de fora. É impossível não se perguntar: seria essa a metáfora para o colapso do masculino e do patriarcado?
As mulheres que gravitam em torno de Paul vivem com mais liberdade sexual: falam sobre pílulas anticoncepcionais ou DIU, não se prendem à castidade e insinuam múltiplos parceiros. No entanto, essa liberdade parece parcial. Ainda existe uma submissão, direta ou velada, ao olhar e ao julgamento masculino — seja de um amigo sindicalista, seja de um companheiro.
Liberdade ou vitrine?
Godard lança uma pergunta que, mais de cinquenta anos depois, ainda provoca desconforto: a liberdade feminina se resume a escolher parceiros e consumir?
No caso de Madeleine, a contradição é evidente. Linda, independente nas escolhas amorosas, mas questionada por seguir uma carreira como cantora pop — controlada por produtores homens e marcada por letras que se aproximam mais de um melodrama pequeno-burguês do que de qualquer contestação política. É uma independência enquadrada, autorizada pelo mercado e pelo olhar masculino.
Interrogatórios e desconforto
As interações de Paul e do amigo sindicalista com as mulheres são, em muitos momentos, sufocantes. Eles assumem postura de interrogadores, como se buscassem confirmar ou refutar, ponto a ponto, as opiniões femininas. Godard amplifica essa sensação ao aproximar as atrizes da câmera, criando um efeito quase claustrofóbico.
O resultado é um retrato ambíguo: homens que discursam sobre liberdade e justiça, mas reproduzem, no cotidiano, mecanismos de controle e silenciamento. Uma tensão que, em Godard, não é casual, mas central à sua reflexão.
Por que ainda falar de Masculino Feminino?
Porque o filme é um espelho desconfortável. Ele reflete a juventude que acredita na mudança, mas esbarra nas próprias contradições; expõe as tensões entre discurso libertário e prática cotidiana; e nos lembra que o cinema, quando ousa, pode ser mais do que narrativa — pode ser um campo de disputa, dúvida e reinvenção.
Ao fim, talvez não haja respostas prontas. Mas Godard, com seu cinema inquieto, nos deixa perguntas que continuam a ecoar. E é esse eco que mantém Masculino Feminino vivo, muito além de sua estreia em 1966.
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Roteiro: Jean-Luc Godard
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